data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Renan Mattos (Diário)
Letícia investigou o aumento do consumo de medicamentos usados para tratamento de déficit de atenção e hiperatividade junto a professores e médicos de Santa Maria
Dados do último boletim farmacoepidemiológico da Anvisa mostram que o consumo de Metilfenidato, presente nos medicamentos Ritalina e o Concerta, empregados no tratamento de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), aumentou 75% no Brasil, em crianças com 6 a 16 anos, entre 2009 e 2011. Um estudo realizado em Santa Maria, com professores de escolas da rede municipal de Educação e médicos de Unidades Básicas de Saúde, mostra que, em 2019, um terço dos médicos ouvidos atenderam pelo menos nove casos de crianças com TDAH por semana.
O trabalho originou o livro O fenômeno da medicalização infantil e o TDAH: um diálogo entre os direitos de saúde e educação (Editora Íthala), da professora dos cursos de graduação, especialização e mestrado da Ulbra Letícia Thomasi Jahnke Botton, especialista em Direito Civil e doutora em Direito com ênfase em Diversidade e Políticas Públicas. O livro chegará às livrarias em setembro.
Entre os resultados da pesquisa, a especialista destaca que 100% dos médicos que responderam ao questionário atribuem o aumento do consumo dos medicamentos à busca do rendimento para corresponder a uma exigência social de direcionar o foco em atividades intelectuais. Além disso, este incremento, segundo os médicos, está associado a pessoas saudáveis (veja abaixo outros resultados).
Letícia adverte que a escalada da procura da Ritalina, também conhecida como a "Droga da Obediência", e outros fármacos de mesmo princípio ativo, está atrelada à pressão social para que as crianças alcancem resultados na escola, entre outros anseios da sociedade. Prova disso é que a demanda pelos medicamentos cresce no segundo semestre do ano letivo. Para Letícia, os comportamentos não tolerados muitas vezes são próprios da idade e importantes para o desenvolvimento das crianças. Leia, a seguir, a entrevista com a autora.
ENTREVISTA
Diário - Quais as principais conclusões do estudo?
Letícia Thomasi Jahnke Botton - A crítica que o estudo apresenta é a busca do medicamento, que age no Sistema Nervoso Central, pelos responsáveis das crianças, para alcançar melhores notas, aprovação de ano, maior concentração, manutenção do foco, entre outras, afastando as frustrações, desilusões, controle de impulsos, por exemplo. Esses comportamentos, por vezes, são próprios da idade e da fase do ser criança e são parte importante do desenvolvimento e amadurecimento saudável. Precisamos deixar que as crianças passem por frustrações próprias e correspondentes as suas idades. É fundamental que elas assumam responsabilidades também compatíveis, sempre com o acompanhamento necessário, claro, para que não formemos uma geração de pessoas que não aprenderam a lidar com dificuldades e contorná-las.
Diário - Qual a saída para que a sociedade respeite mais a individualidade e particularidade das crianças sem a intervenção medicamentosa?
Letícia - Acredito que as principais lições que o estudo trouxe é de que precisamos pensar se as nossas crianças precisam estar e ter um padrão de comportamento que corresponda as expectativas da família e da sociedade e que, caso não estejam, um tratamento medicamentoso irá resolver. É importante também refletir se a nossa sociedade precisa repensar a qualidade da atenção e o tempo que destinamos para as crianças. A criança precisa ser estimulada para o seu melhor desenvolvimento dentro do seu tempo e, por vezes, o que ela precisa é dar vasão à energia, curiosidade e expectativas que ela tem que são próprias da idade. As crianças precisam demonstrar suas atividades, suas descobertas, pedir ajuda na tarefa, brincar. Não estou dizendo que essa tarefa não é cansativa, claro que é, mas a criança se desenvolve melhor e mais rápido, através dos modelos e exemplos que ela vivencia com suas características pessoais.
Diário - Quais serão os reflexos da geração que enfrenta o hiperdiagnóstico de TDAH e a banalização de medicamentos no futuro?
Letícia - O cuidado é justamente utilizar qualquer medicamento, somente com a prescrição e indicação médica, após os exames e acompanhamentos necessários. De acordo com alguns autores estudados, a interrupção abrupta do metilfenidato pode causar a "síndrome da abstinência" e também o "efeito zumbi". O medicamento pode causar dependência física e/ou psíquica e somente deve ser utilizado para casos com prescrição do Transtorno, pois o metilfenidato é estruturalmente comparado com o grupo das anfetaminas. Por esse motivo, os medicamentos à base de metilfenidato são identificados com uma faixa preta, salientando a necessidade de prescrição médica.
Diário - qual o papel da educação e da medicina na redução desses impactos?
Letícia - Percebo que cada vez mais deve haver o diálogo constante entre as áreas das ciências. Esse tema não se trata especificamente de direito ou medicina, farmácia, psicologia, assistência social. E sim, é transversal às ciências, é vida, é sociedade. Note, minha área de formação é direito, mas enquanto pesquisadora, preciso das pesquisas e conhecimentos de profissionais de outras áreas para aprofundar temas que são fundamentais para a sociedade em geral, como é o fenômeno da medicalização infantil, com foco na saúde e na educação, por exemplo.
Diário - Quais medidas o Estado e a sociedade podem tomar para o tratamento adequado dessas crianças?
Letícia - Entendo que podemos perceber como acompanhamento ao invés de tratamento. A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente entendem que Teoria da Proteção Integral e o melhor interesse da criança deve ser foco prioritário de atenção, promoção e salvaguarda pela família, pela sociedade e pelo Estado. O permanente diálogo entre as agendas de saúde e educação, por meio de ações conjuntas vinculadas às políticas públicas e o aprofundamento das discussões sobre saúde mental, facilita a compreensão das consequências de uma medicalização desnecessária. Tenho acompanhado as atividades da Secretaria de Educação, inclusive como palestrante, e me sinto feliz em afirmar que temas como a saúde mental, direitos humanos e inclusão nas escolas são discutidos nas formações dos professores que estão acontecendo online.
DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE EM SANTA MARIA*
- O sexo predominante entre as crianças com suspeita de TDAH é masculino, alcançando 87% das consultas com esse propósito nas Unidades Básicas de Saúde em Santa Maria
- 100% dos médicos informaram que são procurados para esse tipo de consulta, porque as famílias receberam a orientação dos professores
- 88% dos médicos confirmaram que a maior procura por consultas para diagnósticos de TDAH, se dá no segundo semestre letivo
- 28% dos professores informaram que têm conhecimento de que mais de 10 dos seus alunos fazem o uso desses fármacos
- 65% dos professores informaram que há alunos que precisariam ser encaminhados aos médicos com suspeita de TDAH
- 68% dos professores responderam que quando percebem alguns comportamentos, conversam com os pais ou responsáveis sobre a possibilidade de procurar um médico em busca da garantia da saúde (física, mental e emocional). Já 19 % afirmaram que não é sua função
- 100% dos professores responderam que gostariam de aprofundar seus conhecimentos sobre o TDAH
*Foram ouvidos médicos das Unidades Básicas de Saúde de Santa Maria e professores de 1º até o 5º ano da Rede Municipal de Educação em 2019